O universo na palma da mão

quinta-feira, 23 de abril de 2015



Peter não queria que seu amigo soubesse que ele estava com medo de andar no escuro, então caminhou na frente. Já havia aprendido que garotos mais velhos não tinham medo (até dormiam com a luz apagada). E ele não era mais uma criança.

A colina era uma subida breve, mas à noite parecia uma tarefa hercúlea. Seus pequenos pulmões queimavam com o esforço de tentar sobrepor a velocidade das longas passadas de Simon, com cinco anos de vantagem nos músculos. Peter quase tinha que correr. Podia ouvir a respiração do amigo logo atrás de si, exalando excitação a cada metro percorrido.

Algo fez barulho na mata, arrancando um abafado grito de susto de Peter, seguido de uma risada de Simon. Aquilo o deixou extremamente irritado.

― Tem certeza que não quer voltar Pete? ― Disse o amigo em tom de deboche.

― Não! ―Respondeu o pequeno, sisudo. ― Foi só um pássaro.

Simon riu mais uma vez.

― Eu sei que a subida é chata, mas você vai ver. Vai valer a pena.

E ele estava certo.

Peter já havia estado ali um milhão de vezes, mas nunca à noite. Do alto da colina podiam ver as luzes das cidades à volta. Todas brilhando ao longe na escuridão como uma intrincada rede cheia de vaga-lumes que se estendia até ao horizonte, onde se confundia com o manto negro do céu, exibindo mais estrelas do que Peter podia imaginar.

― Uau! É como estar flutuando no meio do universo!

Simon confirmou, silencioso. Ele havia pensado a mesma coisa anos antes, numa noite como essa, quando o pai o levou ali pela primeira vez.

― Vamos. Já deve estar começando. ― Disse Simon.

Os dois meninos estenderam as mantas e deitaram-se lado a lado. As costas de Peter coçavam com a grama que conseguia perfurar o tecido.  Ainda sentia medo, mas este foi logo substituído pela excitação quando uma das milhões de estrelas que enfeitavam o firmamento decidiu mover-se, riscando o céu com sua luz fugaz.

― Olha! Eu vi uma! ― Exclamou, apontando para um ponto na escuridão.

― Outra ali! ― Disse Simon, também estendendo o indicador.

Logo centenas de meteoritos cortavam a escuridão, queimando sua última centelha de vida antes de desfazerem-se em nossa atmosfera. Uma morte gloriosa.

Peter e Simon riam no escuro. Conversavam sobre a vida e outras vidas. Hora e outra exclamavam em surpresa à aparição de uma nova estrela.

― Vim aqui muitos anos atrás, com meu pai. ― Disse Simon, entre um assunto e outro. ― Foi a primeira vez que me apaixonei pelo céu.

― Você sente falta dele? ― Perguntou Peter, logo em seguida desejando não ter perguntado. O amigo não pareceu ter notado a indelicadeza.

― Sinto.

Houve um breve silêncio.

― É tão estranho. Em um momento ele estava aqui e no outro se foi. Tão rápido quanto uma estrela cadente. ― Simon indicou o céu com o queixo.

― Como deve ser?

Simon olhou para o amigo, confuso. Este continuou:

― Quero dizer, lá em cima. Como deve ser estar no céu?

― No paraíso?

― Acho que sim.

― Não sei. ― Respondeu Simon. ― Deve ser bom.

― Será que conseguimos ver as estrelas e as galáxias de perto?

― Talvez. ― Simon ficou quieto por alguns segundos. ― Sempre quis saber como deve ser tocar nas paredes do universo.

― Como assim? ― Perguntou Peter, apoiando-se no cotovelo para fitar o amigo.

― Sim, as paredes do universo. ― Explicou. ― Tem um fim, sabia?

― Sabia. ― Disse Peter, sem saber de nada.

― Então... Eu sempre quis saber como é quando o universo acaba. Como são seus limites.

― Deve ser muito maneiro. ― Concluiu, com sua naturalidade infantil.

― Meu pai deve saber.

Os dois ficaram em silêncio por alguns segundos, até que Simon perguntou:

― Quem de nós será o primeiro a descobrir como é?

― Bom... Você é mais velho...

― Seu sem graça! ― Simon riu, achando graça, na verdade.

E os dois caíram na gargalhada, voltando a falar de tudo e de nada, até que uma nova estrela cruzou a escuridão.

― Olha, mais uma.
O espetáculo seguiu madrugada adentro até que os primeiros raios de sol começassem a despontar no horizonte quebrando o reinado da noite. Era hora de retornar. Os meninos recolheram as mantas e iniciaram a descida.

O caminho de volta foi muito mais fácil para Peter. Se o grande universo, com todas as suas galáxias e constelações, tinha um fim, seus pequenos medos um dia também o teriam.
*       *       *
Ao longo dos anos Peter poucas vezes ouviu falar de Simon.
Logo após a mudança ficou sabendo que o amigo havia ingressado na escola de aviação. E alguns anos depois disso soube que ele havia se tornado piloto. “Um bom emprego para um apaixonado pelo céu”, lembra-se de ter pensado.
A vida continuou. Novos amigos vieram e foram. As primeiras namoradas e os primeiros corações partidos. Quase meia década se passou até que ele ouvisse algo sobre Simon novamente.
Era uma noite de primavera quando sua mãe chegou na sala com um ar inquieto. Ela sentou-se ao seu lado e tentou começar o assunto da maneira mais branda.
― Filho... Eu estava no telefone com minha amiga Clara, lembra dela?
A atenção de Peter despertou ao ouvir o nome da mãe de seu antigo amigo.
― Você e o filho dela eram muito próximos.
― Eu lembro. ― Disse Peter. ― Como está o Simon?
Sua mãe olhou para baixo.
― Ele faleceu.
Um arrepio de surpresa percorreu a espinha de Peter. Passou alguns minutos em silêncio até aceitar a nova realidade, uma em que alguém querido não mais existia.
― O que aconteceu?
Sua mãe lhe explicou como o avião que Simon pilotava havia sofrido uma pane elétrica, perdendo as duas turbinas, e explodido logo em seguida.
Morreu no céu, o lugar que mais amava.
Antes de ir dormir Peter sentou-se no gramado do seu quintal e pôs-se a olhar as estrelas, pensativo. Lembrou-se de tudo o que haviam feito juntos; das longas tardes assistindo “Star Wars” e as intermináveis teorias sobre o cosmos e seus limites. Repassou mil vezes as recordações da noite memorável em que foram ver as estrelas cadentes, rápidas como uma vida que termina.
Simon fora um bom amigo, sem duvida, e sempre seria lembrado.
Vencido pelo sono, Peter levantou-se e caminhou para casa. Antes de entrar, olhou uma última vez para o céu e, sorrindo, sussurrou:
― Agora você sabe como é, meu amigo.
Peter deitou-se na sua cama e adormeceu, mas não antes de apagar a luz. Afinal, ele era um garoto mais velho agora, já não era mais uma criança.

1 comentários:

Evelyn Postali disse...

Cara... Arrancou todas as lágrimas que a cebola do preparo do almoço não fez. Esse conto é maravilhoso. Amei cada parte dele. Sabe o que me lembrou? Aristóteles e Dante descobrem os segredos do universo - um livro incrível.
Parabéns. Você escreve muito bem.

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