Olhos Abertos

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015



Cold Creek Hospital era uma infinidade de corredores e portas. Cada uma exibia um número por fora e por dentro escondia uma estória, vivida e sofrida por aqueles que habitavam os quartos por elas guardados.

Meu caminhar produzia sons simétricos contra o chão estéril, como o bater de um pesado relógio de pêndulo, acompanhado apenas pela luz insegura da minha lanterna, atravessando o vitral de cada porta. Nada além do meu próprio ruído.

 Eu contava os passos.

Cento e vinte. Dois corredores. Vinte e quatro portas. Todos dormindo. Nenhuma irregularidade. Minha marcha continuou em direção à ala três. Quinze passos. Cinco quartos tranquilos.

Tudo em ordem. Esquerda. Um. Dois...

 Meu terceiro passo hesitou. Um som lamurioso pareceu denunciar que, no quarto número seis, talvez alguém estivesse chorando no escuro. Aguardei por mais alguns segundos na expectativa de ouvir novamente o lamento. Um leve soluçar engasgado confirmou minha suspeita.

Esquadrinhei minha ficha à procura do nome do paciente. Com movimentos leves empurrei a porta e entrei no pequeno cômodo.

O velho estava de pé, observando pela janela os pinheiros no pátio. Dedos magros apoiados na madeira. Sua postura vacilante lutava para manter-se firme. Os ombros tremulavam levemente sob o grosso pijama, revelando um chorar reprimido. Pranto de memória insistente lutando contra a persistência em não lembra-la.

― Está tudo bem... Sr. Dashford? ― Indaguei, acanhado.

O homem virou-se de súbito, surpreendido. O rosto inundado. Moveu as mãos apressadamente, limpando as lágrimas. Escondendo-as.

Forçou um débil sorriso. Abriu os lábios para responder minha pergunta, mas tudo o que emitiu foi um longo gemido. Os olhos transbordando novamente. Dor crua.

Senti seu equilíbrio hesitar. Estendi logo os braços e em duas passadas largas alcancei-o, deixando que apoiasse em meu ombro o corpo frágil.

“Não devia estar fazendo isso.” Pensei. Mas era impossível ser imparcial como nos exigiam. Não se pode negar afeto aos idosos que, muitas vezes, são abandonados naquele lugar por seus filhos ocupados demais para lhes prestar o mesmo cuidado que receberam quando crianças.

Porém, eu precisava do emprego.

Ele tremia no meu abraço, tentando segurar o choro, respirava fundo. Por duas vezes desviou o olhar para a janela, mas logo em seguida a angústia o tomava e uma nova torrente corria de seu rosto.

― Não tenha vergonha. ― Eu tentava consolá-lo. ― Pode chorar. Tudo melhora quando se põe pra fora.

― Não há utilidade em chorar. ― Disse o velho homem com a voz embargada, pegando-me de surpresa com suas palavras. ― Não há utilidade em chorar.

Desta vez as lágrimas pareciam querer deixa-lo.

O Sr. Dashford desvencilhou-se e caminhou novamente até a janela. Os olhos marejados fitos no rodopiar da neve entre as árvores.

― A guerra acaba com toda a inocência... 

Eu não conseguia entender o sentido em suas palavras. Como não havia utilidade em chorar se aparentemente era tudo o que havia feito aquela noite? Porém pareciam tocar-lhe profundamente. Fiz uma busca mental para lembrar se havia algum indício de Alzheimer em sua ficha ou algo do tipo, mas não encontrei nada. Ele estava lúcido.

― O senhor deve ter tido algum pesadelo. Devia voltar para a cama e tentar descansar um pouco. Está uma noite fria. ― Sugeri, forçando-me a seguir o protocolo do hospital depois de já tê-lo quebrado.

O Sr. Dashford assentiu, ainda cabisbaixo. Mancou até sua cama e sentou-se, depois olhou em minha direção com os olhos profundos. Mar de sal em gotas de amargura.

― Quer um pouco de água? ― Perguntei, já enchendo o copo que ficava em seu criado mudo. Fingindo que tudo estava melhor.

―Não são pesadelos, são memórias. ― Foi sua resposta em claro sotaque britânico. Acenou levemente com a cabeça e bateu com a palma da mão no espaço ao seu lado, indicando-me para sentar e aguardando minha reação.

“Imparcial”, pensei.

Quando não fiz nada ele redarguiu:

― Vamos, sente-se aqui, por favor. Eu não suporto mais carregar isso...

Percebi que ele queria falar. Precisava.

Sua dor já havia lhe cobrado lágrimas, mas agora pedia mais. Queria palavras. Urgia por ser compartilhada; confessada.

Deixei de ser o vigia noturno e voltei a ser Harvey.

Sentei-me ao seu lado e observei-o enquanto molhava os lábios ressequidos com a ponta da língua e enchia os pulmões para dar início à sua narrativa.

― Beleza e tragédia quase sempre andam juntas. ― Começou, com uma facilidade inesperada em articular as palavras ― Eu me lembro de ter olhado as cinzas caindo do céu naquela noite e ter-me lembrado de casa. De quando eu e minha irmã Jeanette brincávamos na neve na véspera de Natal. A noite naquela rua de pedras escuras trouxe-me uma breve sensação de paz. Uma das pouquíssimas que tive naqueles meses.

Suas mãos tremiam fracamente enquanto ele as estendia até o criado mudo e apanhava os óculos, arrumando-os no rosto.

― Eu andava alerta pelas ruas em ruínas, porém sem medo, afinal já havíamos tomado aquela área. Procurávamos por algum sobrevivente, militar ou civil. Tínhamos um hospital de campo montado a menos de uma milha do vilarejo. Meu pelotão dividiu-se em sete. ― Ele gesticulava explicando a estratégia. ― Três soldados para cada área. Soldado Wilks e Soldado Karning estavam comigo na ala norte.

―Passamos por corpos cobertos de cinzas e os restos do povo que vivia ali antes de os alemães tomarem sua cidade, sua liberdade, suas vidas. ― Seus olhos baixaram ao recordar a barbárie que haviam testemunhado.  ― Aquilo não era a guerra que ouvíamos falar em casa. Estar ali era ser a Inglaterra. Fazer a coisa certa pelo seu país e por aquelas pessoas que perderam tudo. Eu sentia-me honrado em estar do lado certo.

Sr. Dashford parecia estar vivendo tudo novamente naquele momento. Suas expressões passavam de melancolia a um soldado orgulhoso por seus atos. Eu não ousava interrompê-lo.

― Seguros de que não havia mais nazistas por ali, nós três nos separamos para cobrir uma área de busca maior. Eu fui por uma viela pouco tocada pelo fogo. Algumas casas ainda estavam de pé, apesar de parecer estarem ali há séculos. As marcas de balas nas paredes e os cadáveres falavam por si sós, não era preciso palavras para descrever o massacre que havia ocorrido há poucos dias. Não haveria vida por ali. ― Disse com decepção. ― Eu me preparava para voltar quando um som no fim da rua chamou minha atenção. Algo metálico havia sido movido. Talvez fosse um sobrevivente chamando por ajuda.

O homem parou e respirou profundamente. Uma longa pausa seguiu-se enquanto ele parecia lutar com a memória do ocorrido.

― O senhor prefere parar? ― Sugeri, oferecendo o copo com água. Ele fechou os olhos e acenou negativamente com a cabeça. Uma lágrima desceu por seu rosto.

Bebeu um longo gole da água e continuou.

― A casa de onde veio o som estava condenada com certeza, provavelmente pela ação de uma granada. As portas pareciam querer ceder a qualquer respiração, assim como o teto. Empunhei minha arma para o caso de ser uma armadilha e entrei na habitação. Poeira cobria os moveis e as pequenas fotografias espalhadas pelo cômodo. Sinais da antiga vida de uma família agora destruída. O corpo de uma menina caído num dos cantos. ― Ele voltou a respirar profundamente. ― Avancei pela sala e entrei por um corredor. Passei por um quarto e uma pequena cozinha. Quando eu me aproximei da última porta voltei a ouvir um som. Dessa vez parecia uma respiração ofegante. Apressei-me em abrir a porta e...

Ele hesitou. Por um minuto seus olhos brilharam. Pareciam ter visto algo que ele temera reencontrar toda sua vida.

― E então ali estava um menino. Um pequeno menino. Não chegava a ter seus onze anos. Tão magro e sujo. Com os braços estendidos protegendo os cadáveres dos pais. Meu universo parou. Toda a minha frieza militar esvaiu-se ao ver uma criança tão indefesa em meio àquela atrocidade. Larguei minha arma e tentei aproximar-me, estendendo as mãos para acalmá-lo, mas ele estava com medo e apertou-se ainda mais aos pais. Seus olhos pareciam húmidos. Sulcos de lágrimas antigas cortavam a poeira em seu rosto. Imaginei o tamanho do sofrimento pelo qual aquele garotinho devia ter passado. Eu disse: “Estou aqui para ajudar. Não precisa chorar, criança.” Dei um passo em sua direção, mas tudo aconteceu tão rápido...

O senhor Dashford pôs a mão no peito e puxou a borda do roupão, mostrando-me as cicatrizes.

― O menino tirou um revolver de trás de si e me acertou na perna. Levantou-se, olhou nos meus olhos, apontou a arma e gritou: “Não há utilidade em chorar”. E depois descarregou cinco balas no meu peito.

Entre um soluço e outro o velho tentava falar:

― Parecia tão indefeso... Eu não pude acreditar... Não foi culpa dele... A guerra tirou sua inocência...

Ele estava muito abalado. Mal conseguia respirar tamanho era o seu pranto. Abracei-o numa tentativa de fazê-lo voltar ao presente.

Após alguns minutos ele acalmou-se. E então continuou:

― Ali, caído no chão, eu podia ver a poeira rodopiando na luz acima de mim quando os meus companheiros entraram no quarto. Um barulho de tiro e sangue misturando-se ao meu. O corpo do menino caiu ao lado dos pais. Seus olhos ainda abertos, fixos em mim. Depois disso tudo escureceu e eu desacordei.

O Sr. Dashford levantou-se e voltou a olhar pela janela.

― Após meu trabalho na Alemanha e Polônia eu fui condecorado com muitas medalhas. Meu país, em nome de quem eu matei e destruí, deu-me muitos símbolos de honra, mas, para mim, todos eles continham vergonha e culpa. ― Ele olhava seu fraco reflexo no vidro da janela, com desgosto. ― Levou muito tempo, mas meu corpo recuperou-se. Porém minha concepção de quem eu era jamais foi curada. Um dia fui um filho amado, um irmão respeitado, um soldado defendendo a glória da Coroa.  Depois de toda aquela monstruosidade eu era apenas um homem odiado e ferido. Perseguido pelos fantasmas de todos aqueles que morreram numa guerra que eu ajudei a fazer.

De mãos apoiadas na janela e cabeça baixa, o Sr. Dashford parecia exausto. Não queria mais falar. A dor já havia lhe tirado o suficiente por agora. Ajudei-o a voltar para sua cama e deitar-se.

Eu estava saindo do quarto quando a questão pertinente veio em minha mente.

― Sr. Dashford, há algo que eu não compreendi.

Ele olhou-me e anuiu, indicando-me para prosseguir.

― Se o senhor estava lá para ajudá-lo, por que ele tentou matá-lo?

― Ah meu caro amigo ― Ele suspirou ― O que você não entende é que, numa guerra, o lado bom e o lado mau só existem para quem veste os uniformes. Para aquelas pessoas que perdem tudo e todos a quem amam, a Guerra é o inimigo. E nós éramos a Guerra.

Naquela noite eu sonhei com um menino de olhos abertos.


                                                                                                    Picture copyrights: AP Photo/Julien Bryan   

1 comentários:

Evelyn Postali disse...

Que conto!
Simplesmente maravilhoso!
Estou com o nó apertando a garganta. Recentemente li O Pacifista, de John Boyne. A guerra é sempre o inimigo. É ela que mata toda a humanidade. Ela acentua os tons de cinza. Ela arranca o discernimento, cega a razão.
Parabéns. Gostei muito do tema e de como o desenvolveu. É sensível. Marcante.

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